terça-feira, 23 de outubro de 2012

Uma lembrança guardada na gaveta

Nunca contei isto a ninguém. Durante anos este segredo permaneceu guardado no fundo da minha gaveta. Agora, sem saber porquê, voltou-me à memória como garrafa lançada ao mar que regressa passados anos. Tudo começou quando, ainda miúdo, estudava numa escolinha Municipal em Tramandaí, Thomaz Luiz Osório. A minha adolescência ao contrário de muita gente, foi pacífica. Não andei a fumar escondido atrás do pavilhão da ginástica, não andei a saltar o muro que separava o colégio das hortas vizinhas, não andei atrás das miúdas da turma. Em vez disso, arranjei um passatempo meio exótico. Um amigo meu e eu "snifávamos" giz. "Snifávamos", quer dizer, brincávamos com o giz como se fosse "mercadoria" da pesada. Às tantas o hábito era quase um vício: antes das aulas começarem, e depois de ver o contínuo a reabastecer o quadro com giz, passava discretamente pelo quadro a "desviar" um ou dois pauzinhos. Levava para casa e a colecção ia aumentando. Durante dois ou três anos fui acumulando uma riqueza "incalculável"! Às tantas tive que mudar de caixa. E foi essa que resistiu anos na gaveta. Era uma caixa branca, de marmelo. Passaram os anos. Entrei para outra escola. Passei a adolescência. Depois veio outra escola. E, já "Sr.", veio o primeiro emprego. E, depois, o segundo. Um dia, ao olhar para o fundo da gaveta, lá estava ela. Impávida e serena. A abarrotar de pauzinhos de giz. Não fazia mal... mas a verdade é que também não fazia bem nenhum. Então senti que tinha chegado a altura de me desfazer dela. Ocupava espaço, não me servia para nada e continuava a sentir vergonha que alguém encontrasse aquilo. O que fazer? Depois de ponderar alternativas, decidi que a melhor forma de acabar bem a história seria devolvê-la a quem de direito. Ou seja, teria que a devolver a escolinha! Que situação! Sentei-me a escrever um e-mail a directora do colégio explicando a situação (mais ou menos como a estou a explicar aqui). Juntei uma cópia do e-mail e caixa e um dia, desviando-me do meu percurso passei pelo colégio. Já tinham passados alguns anos e já não era a "minha" Escolinha. O porteiro tinha mudado. "Ainda vão achar que é uma bomba", pensei para os meus botões. Depressa me desfiz do pensamento e fiz o máximo esforço por parecer um rapaz decente a proceder com toda a normalidade. Entreguei-lhe o pacote e virei costas. Até hoje não sei o que terá acontecido depois. Mas se a memória me trouxe este episódio por alguma razão foi. E acho que foi para me lembrar da importância de me libertar das "caixas de giz" que guardo nos meus "fundos de gaveta". Há segredos que convém guardar por intimidade, mas há outros que guardo por vergonha. São esses que me inquinam o coração. São esses que libertam um veneno muito subtil mas também muito destrutivo. Basta pensar um bocadinho: se alguém me visitasse, entrasse no meu quarto e visse tudo o que é meu, ou se alguém me visitasse por dentro em todos os meus espaços interiores, de que é que eu teria vergonha? É disso que estou a falar. Estas "caixas de giz" são tudo aquilo que guardei, que retive, coisas a que me agarrei algum dia sem justificação, ou prejudicando outros, ou que possa ter tido sentido num momento e no presente já não faz. Por vezes são coisas mesmo pequenas. Não interessa: são o suficiente para fazer barulho interior e fragilizar a paz interior. Perante uma dessas "caixas de giz" resta uma de duas opções: ou eu delicadamente dou cabo delas ou são elas que acabam delicadamente por dar cabo de mim.


Para reflectir

Reconheces em ti alguma "caixa de giz" no "fundo da gaveta"?

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